
A vida com uma doença autoimune
No primeiro aniversário do TERRAMOR, decidi dar voz a outras histórias, a quem vive com uma doença autoimune. Pedi a oito mulheres com diferentes doenças autoimunes (lúpus, doença de chron, alopecia areata, sindrome antifosfolipide, esclerodermia sistémica), com diferentes histórias e que não se conhecem para partilhar a forma como lidaram com o diagnóstico, o que aprenderam da sua doença e para deixarem uma mensagem pra quem vive com o mesmo desafio. A partir dos 8 testemunhos, e apenas com as palavras dessas mulheres construí um único que partilho aqui. Podes ver o vídeo com uma versão mais curta do mesmo aqui.
“A vida segue rumos que nem sempre compreendemos. Num dia somos invencíveis e noutro tudo aquilo que acreditamos termina: a nossa liberdade, a nossa alegria e a nossa saúde. Depois de meses com dores articulares, inchaços, enjoos, fraqueza generalizada, chegou o diagnóstico. No momento em que se confirmou, chorei por mim, pelo fim da vida que eu conhecia, pelos planos que eu tinha e que naquele momento tinham terminado. Chorei pela minha família. Chorei por me sentir sozinha num mundo que eu não conhecia.
Eu nunca tinha ouvido falar dessa doença! A palavra “crônica” assustou-me imenso. Durante muito tempo não soube lidar com isso. Fiquei desesperada. No dia seguinte comecei a fazer todos os exames e foi horrível, quanto mais pesquisava e via fotos, mais eu ficava desesperada. Encontrei um site que dizia que é uma doença degenerativa, que poderia morrer em até 5 anos. Eu simplesmente perdi o chão. Não conseguia comer e não conseguia pensar noutra coisa. Estava totalmente perdida.
Eu nunca tive sintomas reais, como dores ou problemas internos. Eu simplesmente não percebia essa doença no meu corpo, minhas mãos, meu rosto, minha pele… eu não reparei em nada. Tinha uma vida tão corrida, stressante com o trabalho, que acho que não tinha tempo de reparar no meu próprio corpo.
Após o diagnóstico toda a minha rotina continuou, se bem que de forma mascarada, como era até então. A partir daquele momento passei a ter uma voz interna sempre presente “tu és diferente” ou “tu não podes”;.
Inicialmente não queria aceitar que a doença me iria acompanhar a vida toda e tentava lutar contra isso. Surgiram questões como “porquê a mim?”, “porque é que não poderia ser uma doença temporária?”, “porque é que não poderia ser uma doença com outras características?”. No meu caso é algo que se vê, que os outros conseguem ver que estou doente. E isso incomodava-me. A exposição, o ter de assumir a minha condição perante os outros, o ter de assumir a minha vulnerabilidade e a minha fragilidade. Havia uma mistura de sentimentos de tristeza, de raiva, de negação.
Só me perguntava porque fui sempre saudável e de um momento para o outro era doente? Adorava praia e sol e agora tinha que evitar pois seria mais um gatilho para a doença? Porque teria que tomar vários comprimidos e várias vezes ao dia com? Tinha um filho pequeno e 0 energia para o acompanhar? Tinha medo do incerto e do desconhecido.
Não aceitava, a medicação não deu certo e estava constantemente triste e sozinha não sabia dar a volta a situação. Afastei muita gente de mim por querer esconder a doença.
Tentei esconder ao máximo, só contei a amigas próximas pois não queria que tivessem pena de mim. Comecei a ter vergonha da minha cor de pele, comecei a não gostar de mim, do meu corpo… Não sei se ainda hoje este problema está ultrapassado, mas tento viver com ele o melhor que consigo.
Acho que nunca ninguém me viu chorar e talvez por isso toda a gente pense que eu lidei com a situação duma forma muito adulta, mas a verdade é que por dentro tenho uma ferida que às vezes parece sarada, mas noutros dias é uma ferida aberta e bem dolorosa.
Tudo isto gerou muita revolta em mim e fez com que demorasse muito tempo a aceitar fazer os tratamentos e a adequar os meus comportamentos para que o meu corpo se sentisse “melhor”. Com o tempo consegui ultrapassar tudo isto, pois tive várias consequências da doença que me fizeram ter outra percepção da vida.
Hoje tenho a certeza de que, quem me deu o diagnóstico, o fez com intenção de me ajudar a iniciar uma viagem de conhecimento da minha própria força. Tive naquele momento consciência que me esperava uma longa batalha. Não contando que, na realidade fossem pequenas batalhas diárias. A vida foi seguindo fui aprendendo a ouvir o meu corpo, aprendi aquilo que posso ou não fazer. Cumpro religiosamente as indicações dos médicos que me acompanham e tento viver o mais normal possível sempre com consciência de que tenho limitações, mas também que não tenho amarras e por isso, posso ir mais devagar mas eu chego ao meu objetivo. Tive que abrandar, desacelerar, mudar alimentação por completo e aprender a saber escutar melhor o meu corpo e mente.
Eu estou a aprender todos os dias. Eu acredito que é um processo de aceitação e adaptação. Acredito que ainda estou a lidar com esse diagnostico, com o tratamento, com tudo.
Eu pesquisei muito, estudei muito, procurei ajuda, procurei sobre todos os tipos de tratamento. Achei que iria encontrar algum milagre, algum medico ou tratamento que traz a cura, afinal, a medicina está muito avançada não é? Mas, ao mesmo tempo não estão. Não há medicação para muitas doenças autoimunes, não, a medicina não avançou nesse ponto de descobrir a causa ou um tratamento super eficiente. E por mais que consultas que vá e conte o que sinto, quem sabe dos sintomas e sentimentos somos nós. Aprendi muito sobre saúde com esta doença. Pesquisei bastante e agora sei lidar com todas as situações que possam acontecer comigo.
Eu percebi que eu sou a minha cura, que o tratamento vem de dentro para fora, e não adianta simplesmente tomar medicação se eu não fizer uma reflexão de auto conhecimento. Esta doença ensinou-me a respeitar mais o meu corpo, o meu ritmo e a saborear as pequenas vitórias. Trouxe-me a paixão pelo desporto e alimentação saudável que até então eu desconhecia.
Eu mudei algumas coisas. Melhorei a minha alimentação, faço mais exercícios, descobri o Yoga, tento meditação, tenho procurado ser uma pessoa mais tranquila, acho que consegui sair do ambiente de stress que estava e isso tem me feito bem.
O apoio familiar é essencial! Fui aprendendo ao longo do caminho que o amor, o carinho, a compreensão, a empatia, podem ser os nossos melhores amigos. Da mesma forma que fui aprendendo que a tristeza, a ansiedade, o medo, se mostram presentes fisicamente, aparecendo sob forma de dores, fraqueza e fadiga. Acho que o segredo é ir equilibrando todos eles. O segredo é ir descobrindo cada recanto escondido em nós. E que bonitos que eles podem ser!
A doença foi estabilizando. Recusei render-me. Aceitei que tínhamos de viver no mesmo corpo para sempre e negociei com ela. Acho que não nos estamos a sair mal! Acho que ela me mostrou que eu posso ser uma pessoa melhor a cada dia. Comecei a olhar para vida de uma outra maneira e isso faz-me bem, sinto que ainda tenho muito que aprender, mas acredito que estou no caminho. É um caminho lento…
E nem tudo é tão fácil como possa parecer. A doença trouxe-me também algumas coisas negativas sobretudo pensamentos, dúvidas sobre a minha capacidade e mesmo uma ideia da minha imagem que não tinha até então. Talvez na altura em que recebi o diagnóstico me tivesse feito bem ter conversado com alguém com este problema ou um profissional de saúde que me orientasse a nível de aceitação.
Ainda hoje, me levanto cansada. Corro uma maratona antes de acordar e depois corro outra acordada. Ainda hoje fico triste com a falta de compreensão de grande parte das pessoas em relação a esta doença. É preciso falar, sensibilizar, explicar e marcar o nosso lugar pela nossa diferença.
Terminei o secundário e entrei na faculdade. Como sempre tinha sonhado. Tentei sempre respeitar o meu ritmo, não me sentindo diferente ou estranha por isso. Muitas vezes o caminho para a faculdade gastava quase toda a energia do meu dia. Muitas vezes, os jantares com as amigas ficaram adiados. Muitas vezes, as aulas eram difíceis de suportar até ao fim. Hoje sou formada como sempre quis. Consegui! E, se eu consegui, tu também consegues!
Encontrei o amor da minha vida e Casei-me. A doença deu-me a maior trégua de todas. A minha pequena e doce filha. Tive uma gravidez tranquila, apesar de toda a medicação e cuidados. Assombrava-me o medo de não ter forças para cuidar da minha filha. Há dias em que percebo que esse medo não era assim tão descabido. Há tarefas que me custam fazer sozinha. Mas, mais uma vez, a família é um pilar fundamental. Tenho amor de todos os lados.
Atualmente consigo ser grata por esta doença ter surgido. Considero que foi um ponto de partida para entrar num novo mundo de autoconhecimento, de aceitação e de amor próprio. Esta doença permitiu-me parar para refletir sobre um conjunto de escolhas que fazia no meu dia-a-dia e perceber qual o impacto que essas pequenas escolhas tinham na minha condição física e emocional e consequentemente no meu estado de saúde e no meu bem-estar. No fundo, encaro a minha doença como uma oportunidade de aprendizagem, de evolução e de despertar de consciência para um conjunto de aspetos que estavam a ser negligenciados. Sendo que, tal como a doença está presente todos os dias, também o processo de aprendizagem é constante e passa por diferentes fases. Agora percebo que esta tudo bem em demonstrar a minha vulnerabilidade e fragilidade, sendo isso algo que me torna real. Deixei de lutar contra o diagnóstico e fiz as pazes com esse rótulo. Não é algo que me define, não é algo que me torna melhor ou pior pessoa. Existe um pós doença, mas não tem necessariamente de ser mau. Eu sou doente mas não sou “a” doença. É uma parte de mim e que tem a sua função: que me alerta para quando me estou a desviar do meu caminho e da minha essência.
Posso afirmar que já consigo falar com várias pessoas sobre como é viver com uma doença, sobre explicar o que é sem ter vergonha.
Gostaria de te dizer que não estás sozinha, existirá sempre alguém que estará a passar pelo mesmo que tu é que podes procurar essa partilha. Poderá haver alturas que podes ficar mais inchada pelas medicações mas que tudo passará e será só uma fase. Não te isoles nem deixes de fazer e estar com quem mais gostas por não te sentires bem com a tua imagem. Não te sintas incompreendida porque os outros não conhecem a tua doença nem imaginam as dores e fadiga que sentes, experimenta explicar. Aceita a ajuda e apoio dos teus, não é pena, eles gostam de ti e querem o teu bem.
Nos momentos em que estiver a ser mais difícil lidar com os sintomas, tentar perceber de que outra forma/perspetiva podes olhar para eles? O que é que isto tem para me ensinar? Ouve o teu corpo, ele dá-nos sinais sobre as melhores decisões a tomar…..
O que eu acho que ajuda mesmo é o tempo, com o tempo vais perceber que tens forças, com o tempo vais conhecendo pessoas, com o tempo vais vendo que é possível ter uma vida normal, que é possível fazer planos e até mesmo quem sabe ter filhos.
Não temos controlo sobre da vida, a doença mostra-nos que não temos controlo de nada. Não sabemos de nada do que vai acontecer.. apenas vive o hoje! Aproveita cada momento e acredita.. vai dar certo. Encontra um médico em que confias, faz o tratamento, cuida da alimentação, faz exercícios e entra na “vibe” do auto conhecimento. Procura ajuda profissional se precisares, pois certamente é mais fácil passar por todo este processo acompanhado. As inseguranças e os medos são normais mas tudo com o tempo vai passar.
Ressignificar a doença é o primeiro passo. Dedica tempo a ti próprio/a, cuida incondicionalmente de ti e aceita-te. Ama-te todos os dias e vais acabar por viver feliz sem pensar que a doença é um desafio. Não é, se souberes viver com ela. Ela não es tu!
A minha, a nossa luta continua todos os dias. Mas temos de agarrar esta luta como nossa e desenharmos nós o plano estratégico. Caso contrário, a outra parte tomará a frente das nossas vidas e ditará aquilo em que nos tornaremos. Que tenhamos sempre força para abrir horizontes, para ganhar novos céus e para gostarmos de nós e da nossa doença. Porque será ela uma das nossas eternas companheiras. Independentemente do diagnóstico… Tu és importante! Tu tens valor! Tu és suficiente! Tu mereces amor!”
Decidi dar voz a estas histórias para te mostrar que se todas aprenderam algo com a sua doença, se todas vivem hoje melhor porque a aceitaram, tu também consegues! Não estás sozinha! Que o TERRAMOR continue a dar voz a todas estas histórias e que todas tenham sempre um caminho feliz.